31.8.07



Digo pedra

Digo pedra, esta pedra e este peso,
Digo água e a luz baça de olhos vazos,
Digo lamas milenárias das lembranças,
Digo asas fulminadas, digo acasos.

Digo terra, esta guerra e este fundo,
Digo sol e digo céu, digo recados,
Digo noite sem roteiro, interminada,
Digo ramos retorcidos, assombrados.

Digo pedra no seu dentro, que é mais cru,
Digo tempo, digo corda e alma frouxa,
Digo rosas degoladas, digo a morte,
Digo a face decomposta, rasa e roxa.

(Saramago, Provavelmente Alegria, 1970)

29.8.07

No elevador

No primeiro dia ela entrou no elevador junto com um casal. Apertou o 5, eles o 15, último andar. Beijos, amassos, braços como pseudópodes amébicos para lá e para cá. Era como se ela não estivesse ali.

No segundo dia ela entrou no elevador junto com um senhorzinho que usava andador. Apertou o 5, ele o 3. O velhinho tossiu, pigarreou e tossiu de novo. As mãos apoiavam o corpo no andador e a boca não pôde ser tampada. Ela o ajudou a sair pela porta e seguiu por mais dois andares em companhia do cheiro de garganta inflamada.

No terceiro dia ela entrou no elevador junto com três molequinhos que estavam antes brincando de pega-pega no estacionamento. Apertou o 5, o primeiro molequinho o 2, o segundo o 3 e o terceiro o 4. Eles ficaram rindo da cara dela ao pararem nos andares e nenhum descer. Chegando no 5º ela desceu e os três continuaram rindo, mas complementaram a sacanagem com os dedinhos médios de todas as seis mãos levantados.

No quarto dia ela entrou no elevador junto com um homem muito nojento. Não, muito, muito nojento. Ele encolheu a barriga, inutilmente, e ocupou quase todo ambiente. Apertou o 5, ele o 7. Ele a mediu de cima para baixo, de baixo para cima, deu um sorrisinho e contou que tinha uma Pajero TR4, apartamento na praia e ia fazer uma viagem para a Alemanha. Piscou e disse “quer conhecer a morada do salsichão comigo?”. O elevador se abriu, ela saiu o mais rápido que pôde.

No quinto dia ela entrou no elevador junto com uma jovem mãe e uma menininha de colo, vestida de cor-de-rosa. “Pode aguardar um pouquinho?”, segundos depois entrou a mãe e a sogra. Apertou o 5, cada uma delas, exceto a bebê, apertou o 10. As duas avós, com luva de pelica, disputavam a atenção da criancinha. Com muito chacoalho, um jato de vômito azedo voou nela. Chegou no 5º. “Não foi nada”, respondeu aos 500 pedidos de desculpas. Direto pro chuveiro.

No sexto dia ela entrou no elevador junto com uma mulher cheia de sacolas de supermercado. Apertou o 5, a mulher o 13. De repente um das sacolas rompeu, a mulher abaixou para salvar o conteúdo, outras sacolas caíram, ela abaixou para ajudar. Várias miudezas rolaram pelo elevador. A porta se abriu no 5, mas ela não conseguiu sair. Foi até o 13 ajudando a mulher. Tudo resolvido, apertou o 5. O elevador subiu.

O casal, no 15º, entrou. Amassos. Pseudópodes. Parou no 13, a mulher entrou: “esqueci uma sacola no carro”, explicou-se. E aí parou novamente no 10, quando entrou a moça, a mãe, a sogra e a criancinha. A porta abriu-se novamente no 7, quando o homem nojento não entrou, pois achou que não cabia. Quando pensava que poderia, então, correr para seu apartamento quando o solavanco e a luz verde marcando o 5 ocupassem o mesmo lugar no espaço, percebeu que não apertara novamente o botão e o elevador havia “esquecido” o chamado.

Solavanco, luz verde no 4. Um dos menininhos marginais. Solavanco, luz verde no 3, velhinho com tosse resolveu esperar, pois o andador jamais entraria ali dentro. Solavanco, luz verde no 2, outro marginalzinho. Solavanco, luz verde no 1, o zelador. Solavanco, luz verde no térreo. Todos descem. Ela fica. Aperto o 5 mais de 5 vezes e reza para ninguém aparecer. Prece atendida.

E foi assim que, cansada, no sétimo dia, viu que tudo aquilo era demais e que a escada poderia ser uma alternativa. Hoje, um ano depois, está com 5kg a menos, as panturrilhas mais firmes, mais bem humorada e não pega gripe desde então.

Inveja do eterno amor juvenil



- Você me ama?
- Claro...!
- Quanto?
- Muito, tudo, pra sempre.
- Eu amo mais: pra sempre mais três dias.
- ahahah, bobo.
- Sério. Você é linda, charmosa, gostosa, inteligente, divertida, seus olhos brilham.
- Me abraça forte?
- Te amo...
- Te amo...
- Ops, seu pai chegou, até amanhã,
- Até, te ligo assim que chegar em casa.
- Tá, espero, manda mensagem também.
- Mando. Viu, te amo!
- Eu vou casar com você.

(o videozinho é um achado de uma amiga, que mandou o link com uma nota, que dá título ao post)

28.8.07

Red Hill Mining Town

Acabo de ler o encarte e descobrir que não tinha mais que 7 anos quando a faixa 6 do álbum The Joshua Tree já podia ser ouvida na Europa. Eterna, pude conhecê-la lá por 1995 ou 1996 e desde então me acompanha. Não é a melhor música do mundo, mas uma das mais belas composições (leia-se a somatória de letra, música e pegada) da banda, na minha humilde, partidária e pouco entendida opinião. O tipo de trilha para todas as horas: alegria, fossa, delírio, alongamento, bar, jantar romântico, intervalo de festinha heavy metal.

Ela faz sentir o amor e não coloca o eu narrativo como um bundão abandonado, um bobinho apaixonado ou um coitado medíocre. Ele vive esperança e algo mais que todo mundo vive: dúvidas. Não achei clip no You Tube... só uma montagem feinha. Quem não tem o disco para dar play, pode clicar aqui.

E eu juro que este post não é recado pra ninguém!

_______________________________________________________________

ps: Será que é verdade que Bono e Penélope Cruz estão juntos? Puta mulher linda, aliás. (Nem preciso dizer o que eu e 999 milhares de mulheres e homossexuais achamos do Bono)

Saio tranqüila, ele está congelado

Aproveitei para recolher meus cacos do chão. Peguei um saco plástico vagabundo e fui jogando as partes de mim que encontrava pela casa lá dentro. Pedaços de mãos, de pés, de costas, centenas de fios de cabelos. Boca, olhos e pescoço também estavam esmigalhados e foram parar lá. Partes de minhas pernas, as coxas especificamente, também foram encontradas e colocadas no saco. Encostado no fim do corredor, meu coração pulsava fora de mim. Estava escuro, descompassado e pesado demais. Peguei-o com cuidado e não o joguei no saco, como as outras minhas partes machucadas e dilaceradas. Amarrei a boca do saco, enfiei-o em outro e joguei tudo fora. Respeitei as experiências do meu coração, embalei-o em MagiPac e resolvi deixar no freezer. O saco plástico não o agüentaria e o que faria eu se arrebentasse o saco e caísse meu coração? Se escorregasse pelas escadas e espatifasse em um degrau qualquer?

27.8.07

100 posts


Estava esperando pelo post #100 e pensando no que poderia fazer de interessante para o marco. Isso há uma semana. Esqueci completamente e o post anterior ocupou um lugar privilegiado sem mérito. Coisas da vida... já aconteceu comigo, certamente também com você.

O 101 é este aqui. Vi esta árvore na semana passada, fiz a foto, mas não imaginava que a cena interagia como uma espécie de profecia. Ela é o retrato do meu interior hoje.

É cinza, mas mira o alto e não perde o foco. É o que interessa.

Para arrematar, assista a abertura do seriado Dexter, um dos meus novos favoritos e veja se a edição é ou não espetacular...

A casa 15


Sempre que tenho um rascunho em mãos faço um tipo de mosaico com formas geométricas ou desenho o tradicional cenário com casinha e chaminé, árvore, cerca, nuvens, sol e montanhas ao fundo. O mais interessante é que a casa dos meus rabiscos tem plaquinha com número, e é sempre 15. É incrível como a nossa mente guarda as coisas com carinho. Eu já morei em uma casa de número 15 há muito tempo, quando tudo era festa. Quando quero extravasar ou sumir do mapa, meu cérebro lembra com saudade daquele tempo em que dormir, estudar e rir era emprego, e eu rabisco a mesma casinha sobradada com janela para a rua.

Eu era criança e a casa 15 ficava em Feira de Santana, na Bahia, num condomínio fechado, que reunia várias casas em uma rua larga e comprida, que terminava em um espaço com estacionamento para visitantes, piscina, bar e campo de futebol, mas que sempre era ocupado por rede e bola de vôlei. Havia muitas mangueiras pelo condomínio e poucos cachorros (para minha sorte, que tinha pavor naquela época).

Éramos uma criançada diferente das de hoje. O computador era artigo apenas para bancos e grandes empresas e ter videogame era um luxo para os solitários, já que o legal era brincar na rua. Jogávamos queimada (lá era “baleado”), pulávamos elástico, desbravávamos casas vizinhas ainda em construção, as quais nossos pais nos faziam prometer que nem passaríamos por perto. Éramos uma turminha unida tanto para o bem quanto para o mal. Se estávamos juntos para estudar, também estávamos juntos oferecendo suco e bolo de terra para as crianças menores. Riamos a cada bocada dos pequeninos com nossos garfinhos de plástico e não contávamos para ninguém nossas pequenas malvadezas. Mantínhamos nossos segredos.

Na casa 15 pulava as janelas para poder sair para brincar aos fins de semana que estava de castigo, e achava que meus pais não sabiam. Lá eu dividia o quarto com minha irmã, pois preferíamos assim. Foi lá que fiz meu primeiro ensaio fotográfico, gastando um filme novinho de 24 poses com fotos de nossos brinquedos.

Na casa 15 me enroscava, de ponta cabeça, numa rede e pedia para os amigos balançarem “bem fortão”. Devo ter me machucado umas vezes, mas não me lembro. Na casa 15 eu também caí no quintal e ralei os braços nas paredes chapiscadas do corredor, de onde saía com minha bicicleta Caloi Ceci. Ainda posso me enxergar pulando dela quando percebia que não tinha mais ninguém segurando a garupa e, seilá por que, não freava ou fazia curvas. Apenas saltava da magrela e deixava a coitada à deriva, até cair e se ralar nos paralelepípedos contínuos da única rua do condomínio.

-----

“Moscão!!!!!”
Quando eu morava na casa 15 minha mãe ainda tinha muito medo de moscas varejeiras, aquelas verdes, cheias de larvas, sabe? Ela tinha ouvido dizer que uma criança havia morrido porque a mosca depositou os ovos no nariz ou no ouvido dela sem que percebesse, e os bichos cresceram por dentro. Assim, ela desenvolveu um método de proteger eu e minha irmã das moscas nojentas e matadoras: com a mão direita, apertávamos o nariz e aproveitávamos para cobrir a boca (já fechada com força, mantendo os lábios escondidos) e, inclinando a cabeça, tampávamos a orelha direita com o ombro. A mão esquerda tratava de fechar a orelha esquerda e os olhos também eram apertados. Fechávamos as perninhas e nos mantínhamos quietas, para a mosca não perceber nossos movimentos. Aí, minha mãe pegava o inseticida e cumpria seu papel de heroína. Pronto, estávamos salvas!

Claro que pode parecer maluquice, mas Feira de Santana ainda tinha muito que melhorar no seu saneamento básico e, certamente, se eu morar num lugar semelhante, farei o mesmo com meu ou meus futuros filhos. “Moscão!”, também gritarei para eles, sendo perpetuado nosso eterno grito precedente da operação tapa-buracos.

-----

Da janela do meu quarto, que dava para a rua, dei a última olhada para o condomínio, em 1991. Deixamos a casa 15 com muitas lágrimas e dor. Soube que a escada vazada de madeira, desenhada pela minha mãe, as ardósias da sala, o jardim com “rosas graxas” coloridas não existem mais, talvez nem o armário incrível, que, com uma das portas, escondia a suíte do quarto dos meus pais. De qualquer forma, apesar de não abrigar uma caixa, ou uma porta secreta, sei que ainda há muitos segredos meus espalhados por lá.

21.8.07

Thais Simpson



Em 2001, na faculdade, fizemos um trabalho de conclusão de curso da disciplina de Estética sobre os Simpsons. Detalhamos tudo: o tipo de traço, o enredo, a intenção do criador, fizemos paralelos com a realidade da sociedade americana e com a nossa, gravamos trechos, viajamos em cima do assunto. O mais interessante, no entanto, foi termos tido coragem de passar pasta de teatro amarela no corpo todo e apresentarmos o trabalho caracterizados. Eu era a Marge... uma amiga fez até uma peruca azul que ficou bem perfeita! Infelizmente não achei a foto... Bons tempos aqueles...

Na sexta assisti ao longa "Simpsons, the movie" e achei bem legal. Liguei pro pessoal e fui convidada para assistir o filme com a família. Está aí uma foto da minha viagem a Springfield... tentava achar um lugar na primeira fila.

http://www.simpsonsmovie.com

20.8.07

Momento fotolog



Perdemos tempo procurando doenças difíceis de curar ao invés de tentarmos apenas limpar os óculos... (foto TF)




Pipoca de macarrão rosa = infância eterna e língua rosa (foto TF)




"O conhecimento chega, mas a sabedoria demora." (Alfred Tennyson)
"A sabedoria começa na reflexão." (Sócrates)
(foto TF)




Arquibancadas frias e placar quente. São Paulo 2 x 0 Atlético Paranaense. Morumbi, 11-08-07 (foto do gol TF; minha, CLS; do momento torcida, automático)

15.8.07

Dia do solteiro


Se ser solteiro é ser livre, quero ser uma casada solteira e oferecer isso a meu futuro marido. Não quero enquadrar, não quero obrigar, não quero exigir e nem ser enquadrada, obrigada, exigida, sufocada, enforcada, encoleirada. Quero sim que as escolhas sejam recíprocas, correspondentes. Nada de pessoa pela metade, quero inteiro e me doar por inteira também. Quem não é livre não consegue encarar isso e morre capenga.

13.8.07

Impossível não inventar uma dancinha



Certamente o gordinho não estava ouvindo a música...
Se ainda não conhece, procure a banda no You Tube e apaixone-se.

Paris 2004 é incrível, mas as que encontrei ao vivo estão ruins. Essa animaçãozinha da Young Folks está bacana.

Rugas na testa

Sábado fui no Morumbi e dei sorte pro São Paulo, que mandou dois golaços pra rede do Atlético Paranaense, ao contrário de outra vez que o fiz empatar com o São Caetano, no Pacaembu. Isso foi na semifinal do Paulistão deste ano, o que não significou só uma partida não ganha, mas o fim do time na prova.

Sabadão fotografei o primeiro gol na hora que o goleiro caiu e o Muricy riu. Vesti uma camisa comemorativa por cima de um moletom que estava por cima de uma baby look e ainda passei frio. Comi Habbib's do isoporzinho sem lavar as mãos. Uns quadradinhos de Suflair me foram enfiados na boca logo após guardar R$1 no bolso. Cantei todas as musiquinhas da torcida, batuquei na perna, bati palmas, gritei palavrões. Fiz pose com o gramado de fundo e com a arquibancada também.

Perdi o cabo USB da máquina e minha primeira vez no Morumba está presa lá dentro.

8.8.07

Conselhos


Pega o quebra-cabeça que está montado há anos e pendurado naquele quarto escuro cheio de entulho e desmonta. Aproveita e tira o castelinho de Lego daquela caixa, desmonta também. Rasga todas as anotações antigas, que viraram regras naquele caderninho amarelado escrito com uma Bic que já estourou faz tempo. Pare de remendar antigas coisas, antigos porta-retratos, antigos álbuns, antigas fotografias que têm lugar especial, mas só no passado. Deixe-as em paz lá. Apague os rabiscos que fez com raiva naquela lousa verde, onde deveria ter só anotações do prato do dia de algum restaurante de esquina. Sabe aqueles pôsters pregados na parede? Faz dobraduras ou recorta menininhas de mãos dadas com eles. Renova os sonhos.

Compra pelo menos novos cadarços para seu tênis da sorte, que não sai do armário; e troca as camisetas lisas brancas e pretas por outras mais alvas e menos desbotadas, respectivamente, claro. Abre a geladeira e limpa. Pega aqueles restos de comida e joga fora, faz mal. Termina o suco que está no fim, o iogurte que está vencendo, a manteiga que está rançando. Joga fora a pasta de dente que já está dura na bisnaga e compra uma escova mais macia e de melhor qualidade. Tem que ter boa empunhadura e limpar bem não só os dentes da frente, sem retrair as gengivas, mas também os lá do fundo.

Tira um pouco a roupa, fica descalço. Usa mais cremes para hidratar a pele e poder sair sem medo do sol ou do vento. Bebe mais água e encara a chuva a céu aberto, mesmo com trovões. Brinca no chão com o cachorro e sorria pro espelho. Olha pelo buraco pelo olho mágico sem medo, pelo da fechadura sem sentir-se culpado e nunca mais deixe aquele quarto escuro cheio de entulho de portas trancadas acumulando poeira. Mostre a todas as suas coisas seus devidos lugares.

7.8.07

"elucubrando"

*******************************************************************

CENA ÚNICA - Sala - interior, início de tarde.

Sala de uma casa térrea com um móvel simples onde há uma TV de 20”, DVD, telefone fixo quadradão, espaço para coletânea de livros e alguns dicionários. No canto há CDs espalhados. Um tapete de palha cobre grande parte do chão com piso bege. Há apenas um quadro com uma paisagem na parede e uma grande janela está coberta apenas com o forro da cortina, o que propicia que a luz natural do início de uma tarde ensolarada seja direcionada para o sofá, clareando a cena. O sofá é aconchegante e revestido com tecido verde claro. Um casal está deitado abraçado. Ela encostada no peito dele.

Fade out / sobe BG tum-tum do coração, que permanece em médio som por toda narrativa

Câmera mostra cenário. As imagens são feitas, como se os olhos Dela piscassem e reparassem em todos os cantos. Está inquieta. Uma pan é feita em suaves movimentos, como se Ela acompanhasse com os olhos a luz que vem da janela e o balançar da cortina.

Corte seco alterna para câmera com foco nele, como o ângulo do olhar Dela. Apenas vê-se parte do braço Dele e o contorno do rosto.


ELA
Quero dizer umas coisas. Sempre que estamos assim eu me sinto muito bem. Como se nunca tivesse deitado antes num sofá com alguém, sabe. Seilá, já te disse que esse é o melhor lugar do mundo. Eu fico aqui pensando como é bom gostar de você e como eu amo você. Aí paro e fico na dúvida: “eu gosto mesmo dele ou do fato de gostar dele”. Você entende o que quero dizer? É que é bom gostar de alguém específico, mas melhor ainda exercitar o gostar. Tem gente que nunca amou na vida, sabe. Sério. Mas aí eu percebo que são as duas coisas e que não seria a mesma coisa se eu amasse, mas não fosse você. É bom porque o foco é você. Eu te olho e seus cílios são os mais lindos, sua boca é meio bicudinha, mas é a mais gostosa, sua barba me dá orgulho de eu ter um homem com H maiúsculo do meu lado. E seus braços, puxa, me sinto tão minúscula dentro deles que esqueço minha altura, meu peso, minhas imperfeições. Sou eu envolvida num espaço perfeito para mim, como se fosse só meu, e me sinto especial. Boba né. Boba mesmo. E sabe, ao mesmo tempo que você tem ataques e tem esse problema de não expor o que você sente, eu tento ver “o lado bom” e quero acreditar que isso acontece porque você sabe o valor de tudo e não quer cair no erro de tanta gente de dizer coisas bonitinhas ao vento. Mas você é exagerado e isso me machuca, claro, sou mulherzinha, né. Mas ok, estou tendo calma com você. Quando te vejo assim é muito claro que você é uma pessoa que precisa demasiadamente de carinho, de amor, de paparico, mesmo negando até o fim. Eu tento colocar altas doses de tudo isso nos meus gestos e parece que de certa forma tenho êxito, pois acho que confia em mim. Esse meu gostar de você me dá medos também, sabia. Sou sincera, transparente e meu maior medo é passar por boba, ser enganada, manipulada ou só reconhecida como uma complicada perfeitinha que sabe tratar bem. Não quero só isso, quero tudo, quero as vírgulas, as reticências e todos os parênteses que tenho direito. Quero ser reconhecida por texto completo e não só um versinho bobo como “batatinha quando nasce”. Ahaahahahh, você ri, né? Mas é isso mesmo que penso. Penso demais, eu sei, mas paro de pensar aqui, no melhor lugar do mundo, onde não trocaria agora por nenhum outro. Eu queria que você dissesse só uma vez algo derretido, mas me calarei com atitudes que falem pelo seu coração, então capricha, porque sou menos insegura que antes, mas não sou de ferro. Me faz sentir que eu me encaixo nos seus braços melhor que qualquer outra e que esse lugar foi feito pra mim. Sabe, depende mais de você do que de mim. E apesar de tudo ser tão lindo, se eu perceber que é em vão eu assopro as velas e vou embora, amarro minha trouxa, pego o próximo barco. Não quero isso, mas quero ser feliz de verdade né. E não consigo entender como alguém com tantos defeitos e chatices pode ser tão apaixonante. Ou eu sou louca, o que é provável. Só sei que não entendo o motivo, mas ele é especial e está acima de muitas coisas, não consigo enxergá-lo. Parece que há apenas um fio que divide o gostar do não gostar. Ele é fino, mas de aço e muito difícil de ser cortado. A menos que algo específico, sério e ilegal o rompa, acho muito difícil ser tirado do seu estado. O meu amor por você é assim, um fio que segura algo bemmm maior, algo que nem eu mesma sei, mas que está acima do céu. E quanta besteira eu já falei...

ELE
(abre os olhos, a câmera mostra-o acordando)
O que você está me olhando?

ELA
Nada.

ELE
Nada mesmo?

ELA
Não...

ELE
Sossega, dorme, fica quietinha, fica?!
(beija a testa dela)

ELA
(sorri e fecha os olhos)

sobe BG: Open Your Eyes, Snow Patrol
câmera passeia pela sala/ zoom in/zoom out em detalhes do corpo deles e do ambiente.

Página dois

A foto 3x4 que antes estava na carteira agora ocupava o fundo da lixeira do banheiro, e aos pedacinhos. Três porta-retratos estavam virados. Depois de enxugar as lágrimas na pia decidiu sair. Olhou-se no espelho. Virou e olhou por outro ângulo. Levantou um pouco a gola, ajeitou-a. Experimentou um colar, mas achou melhor ficar sem. Trocou os brincos por outros menores e aplicou apenas gloss incolor sobre os lábios. Prendou os cabelos em um rabo de cavalo, mas deixou uma franja bem pesada sobre a testa, que ajudava a delinear o rosto. A calça verde musgo estava mais larga e ela sorriu. O decote era discreto, não agredia outras mulheres e não provocava os homens. Era morno, mas muito feminino. Entrou nos saltos finos do sapato brilhante de verniz preto e sentiu-se poderosa. “E ainda é confortável”, se enganava propositalmente. Já com a mão na maçaneta da porta da frente, resolveu voltar. Soltou os cabelos, aumentou o decote, o tamanho dos brincos e borrifou seu melhor perfume. Agora sim podia abrir a porta, tinha tomado as decisões corretas.

Não ação

Tum, tum, tum
Bate à porta
Pam, pam, pam
Espalma a porta
Pow, pow, pow
Soca a porta

Hei, hei, hei!
Grita à porta.

Ninguém abre
Ninguém escancara
Ninguém respira do lado de dentro
São apenas fantasmas velhos que preenchem o vazio do lugar
Fantasmas velhos sem força ou iniciativa para dar qualquer resposta.

6.8.07

Justiça muda

Ele planejava como fazer aquilo há muito tempo. Todos os dias dedicava cerca de 45 minutos pensando como seria. Envenenamento? Tiro? Enforcamento? Facada? Até coisas absurdas e desvairadas ele imaginou, como machadadas convulsas ou um corte mal feito, que arrancaria as cordas vocais e deixaria uma cicatriz profunda e dolorida, marca que ficaria para sempre como um aviso para toda a vizinhança.

Fazia tempo que não dormia bem e era só isso que queria. Algo ínfimo, óbvio, merecedor. Fazia anos (ou talvez apenas meses) que aquele som irritante lhe incomodava tanto que pensava em mudar do bairro que tanto gostava e crescera. Não agüentava mais o barulho dos latidos graves e de outro um pouco agudo que às vezes aparecia e compunha a orquestra mal ritmada, desafinada e inoportuna sob sua janela.

Para tentar solucionar o caso, havia instalado no quarto uma janela com vidros triplos contra ruídos, mas não foi o suficiente para isolar o som martirizante. Os latidos ficavam abafados, mas, em seus ouvidos, um amplificador devolvia a vivacidade daqueles ladridos.

Em agosto, decidiu. Pegou um dos seus copos mais pesados e projetou o arremesso pela janela da sala, para tentar sentir que o objeto chegaria ao destino e daria um susto nos donos indolentes e ao mesmo tempo petulantes. Envergou o corpo, segurou firme o copo, respirou e não o jogou. Não poluiria a rua.

No dia 5 comprou uns bifes e veneno para rato. Preparou com cuidado a arapuca, vestiu moletom, preferiu as escadas ao elevador e disfarçadamente fez o que tinha que ser feito.

Algum tempo depois escutou uma movimentação na casa da frente e depois disso só silêncio. Não estava feliz com o que tinha feito, mas estava satisfeito e essa sensação lhe deu um prazer nunca antes provado. Passou a ser um justiceiro e em menos de duas semanas ninguém mais ouviu latidos azucrinantes num raio de 2km.

Seu objetivo era matar para dormir, no entanto, virou refém de seus próprios cães e à noite ficava acordando pensando, pensando, pensando. Chegou à conclusão que para dormir em paz só matando a si mesmo. Foi na cozinha, preparou um belo bife à Organofosforado Carbamato e foi dormir.

3.8.07

Vale pra tudo

Abri os olhos e ouvi

Don't Leave Me Now
Supertramp


Don't leave me now
Leave me out in the pouring rain
With my back against the wall
Don't leave me now
Don't leave me now
Leave me out with nowhere to go
And the shadows start to fall
Don't leave me now
Don't leave me now
Leave me out on this lonely road
As the wind begins to howl
Don't leave me now
Don't leave me now
All alone on this darkest night
Feeling old and cold and grey
Don't leave me now

Don't leave me now
Leave me holding an empty heart
As the curtain starts to fall
Don't leave me now
Don't leave me now
All alone in this crazy world
When I'm old and cold and grey and time is gone...

2.8.07

o BG que quebrou o cinema mudo

As lembranças vêm desordenadas, nada de ordem cronológica, nada de índice, nada de cabeçalho e rodapé com notas explicativas. São só imagens, mas imagens carregadas de falas. Diálogos inteiros, monólogos, por vezes frases soltas e por outras silêncio. Aquele silêncio que preenche espaços ou infla tanto que parece que a cena vai explodir.

Primeiro foram índios deitados em redes e festeiros que vieram à mente; depois os olhos verdes arregalados com raiva. Estava bravo naquele dia. Na veia da testa o sangue corria quente. As janelas vibrando com som alto tomaram lugar. Aí veio na seqüência os chapeuzinhos de papel e os instrumentos musicais de plástico. Depois veio a aliança centralizada na sala, o elevador e, por fim, só escuro. Nesse momento a recordação não era imagem, mas o tilintar das tampas das panelas logo cedinho, acompanhados de risadas altas e que juraria serem reais, sinceras e gostosas de dar.

O escuro foi a imagem que fez querer parar de pensar. A não-imagem não. O tilintar das panelas e as risadas altas.

.
.
.

It's in the way you're always hiding from the light
See for yourself you have been sitting on a time bomb
No revolution maybe someone somewhere else
Could show you something new about you and your inner song
And all the love and all the love in the world
Won't stop the rain from falling
Waste seeping underground
I want to break it down
Break it down again