30.6.08

retrospectiva

Quando eu era criança eu ia a pé pra escola, corria e andava de bicicleta a tarde toda e os fins de semana inteiros pelo condomínio onde morava. Era uma rua fechada extensa e, no final dela, havia uma área de lazer com piscinas e quadra de grama. A gente ia da portaria até a quadra e da quadra até a portaria inúmeras vezes. E sem tênis com amortecedor, era de havaianas mesmo (aquelas antigas, azuis, pretas, verdes ou amarelas, sempre com branco). No meio do corre-corre brincava de pular corda, pular elástico, esconde-esconde, “baleado” (como chamam Queimada na Bahia). Não era raro eu passar mal e ter que tomar injeção de Dramin (tenho alergia a Plasil) para cessar o vômito. Mais tarde descobrimos que eu tenho prolapso na válvula mitral, o que é um probleminha sem muita importância, que não vai me matar, mas que me fez levar no bolso um atestado médico para não prática de Educação Física a vida toda. Ok, mesmo assim eu jogava vôlei na rua. E continuava ligada na tomada.

Entre 11 e 17 anos eu andava mais de 15 km por dia em terreno acidentadíssimo (quem conhece Itatiba entende o quanto o superlativo foi cabível). Quando conquistei minha carta de motorista (hoje sou pilota) e logo após entrei na faculdade e consegui um estágio, o sedentarismo poderia ter me pegado, mas resisti. Conheci as delícias de um choppinho vez ou outra, de um vinho bem descansado e, com dinheiro próprio, pude comprar inúmeras guloseimas inexistentes no meu então cardápio, graças à triagem da minha mãe. Com todo este novo mundo a meu bel prazer, poderia ter me entregado, mas não. Resisti e entrei numa academia. Comecei a trabalhar e meu trabalho me fazia caminhar bastante e, numa correria total, minhas panturrilhas tornavam-se as mais bonitas já vistas.

Tudo isso acabou. Preciso fazer alguma coisa, virei rainha do escritório sem direito AB Toner. Sim, este post ficou chato e acabou de repente. Ficou chato porque é assim que estou hoje. E ponto. Um bom dia pra você.

25.6.08

Eu quero morrer como a Ruth Cardoso

Eu quero morrer como a Ruth Cardoso, rápido, sem esperar.
Eu quero morrer e ter meu marido chorando pela morte ter nos separado. Calado por lágrimas quentes derramando um choro morno em minha presença apagada. Emudecido pela falta de meu espírito num corpo morto dentro de um caixão sem cores.
Eu quero uma morte romântica, triste e sóbria, como a de Ruth Cardoso.

Eu quero morrer com rugas semelhantes às de dona Ruth. Quero que elas representem uma coleção de feitos. Quero morrer falando com um filho, quero morrer sem tempo de me despedir. Quero morrer por meu coração ter trabalhado além da conta.

Eu quero morrer como a Ruth Cardoso, sendo eu e não primeira dama. Eu quero morrer com minha história de vida calcada em pedra. Eu quero morrer sendo sócia de uma vida conjunta, quero ser completude e relevância para mais de pelo menos meia dúzia de pessoas, sendo isso reconhecido por não ter sido metade, mas meu todo.

Eu quero morrer sem óculos, como a Ruth Cardoso. Eu quero não precisar ver a última cena. Quero só sentir o alçar vôo das asas da minha alma pelo impulso das minhas pernas.

16.6.08

Para voltar

A temperatura até que estava alta para uma tarde de meados de junho, mas a sensação térmica pedia por uma blusa de manga comprida reforçada, já que o vento bagunçava os cabelos e assoviava alto ao pé do ouvido. Entrei no carro e, como pouco gosto de fazer, fechei o vidro da minha janela. Recostei a cabeça nele e observei os pedaços de chão entrando embaixo do carro em movimento, ou, sob outra perspectiva, o carro passando por cima da rua cheia de pegadas, passos, marcas, freadas, histórias. Tanto faz. Vi bicicletas, pessoas correndo, algumas paradas também passaram. Passou um posto de combustível, uma doceria, uma lanchonete. Passava tudo quase tão rápido quanto a minha presença em cada um daqueles trechos de cidade.

O sol estava se pondo e as nuvens, que pedrentas explicavam que haveria chuva ou vento no fim do dia, também já tinham deixado claro que não iriam permitir que a bela estrela desse seu adeus com ar glorioso. Ele daria lugar para a lua (que já dividia o lado oposto do céu desafiando sua majestade) sem despedir-se formalmente, sairia à francesa. Mas, de forma tímida, como que para não desapontar, preparou uma surpresa. Quando o carro seguia por mais uma rua, que levaria para a saída da cidade, dezenas de plátanos com folhas avermelhadas pelo outono nos davam tchau. Mesmo fraco, o sol abençoou as árvores magras com uma cobertura dourada imortalizando um momento que, até então, era simplesmente uma passagem por cenários urbanos comuns e confundíveis.
Felicidade é aquele milésimo de segundo que você repara que você está no lugar certo, com a pessoa certa, na hora certa, com um frágil raio de sol iluminando seus olhos para que, além de mais brilhantes, eles sejam capazes de refletir aquela eufórica sensação de privilégio em slow motion, esquentando o mundo inteiro sem mesmo precisar se mover. O duro é que, se você não perceber este milésimo de segundo, nada fará sentido e felicidade será uma palavra que rima com caridade, maldade, ansiedade, e mentira, não verdade.

4.6.08

Dia dos Namorados


Perfumou-se, colocou uma bela saia e sapatos bem lustrados. Conferiu o presente ainda dentro da sacola. Laço amassado, desfez e refez com a fita de cetim já marcada. Não ficou bom, tirou, passou com o ferro meio morno. Laço novo. Ele chegou para buscá-la com flores. Ela entregou a caixa e ele disse ter adorado os finos lenços bordados. Foram ao cinema e ele a deixou em casa antes das 10h da noite, como impôs o pai. Dois meses depois ele se foi sem volta, e já faz mais de 50 anos. Suspira de saudades, foi seu último Dia dos Namorados acompanhada.

Escreveu um bilhetinho numa daquelas folhinhas quadradas de bloquinhos de papel de propaganda. Não gostou, amassou. Escreveu outro, mas as linhas imaginárias ficaram tortas. Amassou. Resolveu mudar também a mensagem. “Hummm, má idéia”; amassou. Deu-se conta de que estava escrevendo a lápis, "como assim?!". Amassou de novo. Quando pegou a caneta, escreveu as calculadas frases e assinou... "puxa, ficou ótimo!". Ao entregar com rosas colhidas no jardim, a moça leu: “Eu amo você. Eu amo você. Eu amo você, meu amor.”

Ele era diferente. Ele era tudo. Ela queria algo especial. Com um mês de antecedência vasculhou cada prateleira de cada loja de cada rua da cidade. Não encontrou nada. Como dar uma camisa, para alguém de olhos tão brilhantes? Como dar um isqueiro, um chaveiro, um objeto qualquer, para alguém tão sensível. “Já sei! Farei um presente com minhas próprias mãos!”. Comprou retalhos de linho branco e bege, linha azul petróleo. Cortou e costurou o tecido. Bordou as iniciais do nome dele. "Perfeito". O Dia dos Namorados seria comemorado no cinema, com Cantando na chuva, para ficarem bem pertinho, sem o pai contestar.