31.3.08

Base para um filme trash dramático com uma protagonista burra

Pegou uma pá e começou a desenterrar. O calor estava imbatível e o suor logo começou a escorrer pela testa e pingava na terra pela ponta do nariz. Os pés descalços pisavam naquela terra como se não houvesse nada ali, mas sabiam que havia algo sim, e os dedos se comprimiam o máximo que podiam para que não tivessem contato total com aquele resto de algo vivo, já bem morto, ali.

O medo tomou conta e um calafrio percorreu todo o corpo de pouco mais de um metro e meio de altura e peso médio. Sabia que não era certo desenterrar o que não lhe pertencia. Sabia que não era certo desencavar aquilo. Em conseqüência, poderia ser rasgada por inteira. Mas persistia e a terra não parava de sair pela pá, e parecia que não tinha fim, e não parava de tentar encobrir o que tentava achar.

O sol se pôs e ela continuava ali, já ajoelhada, cansada, com vestido sujo e pés aconchegados num monte de terra já retirada do buraco. A luz da lua iluminou algo bem no fundo e com a pá sentiu algo rígido. Os braços não alcançavam o fundo e, desesperada, começou a cavar o entorno. Cavou por mais algumas horas e conseguiu ter contato com parte do caixão.

Suada e trêmula, abriu a parte do caixão que podia. Assim que o fez se arrependeu. Todas as ex-namoradas dele saíram gritando e rindo de forma cínica e malévola de lá e começaram a enforcá-la, a xingá-la e a caçoar dela. Umas lhe espirravam perfumes, outras a envolviam com laços de presentes, outras mais impiedosas cantava músicas e recitavam trechos de filmes especiais. De repente, o céu se transformou em uma enorme tela e todas as ex-namoradas dele projetavam os melhores momentos juntos entre as estrelas.

Enlouquecida e rasgada, não só nas vestes, mas na pele e no coração, deixou-se levar pelas rejeitadas. Juntou-se a elas. Deitou-se no buraco e se cobriu com a terra que ela mesma havia retirado do lugar. Esqueceu o tempo e misturou erroneamente o presente e o passado. Boicotou o futuro e morreu.

Impressão ruim

Entrei e procurei pela carteira com anotação 24, meu número, segundo o fiscal. Era na fileira do meio, que separava as outras quatro fileiras da sala, duas de cada lado. Logo reparei que na coluna um, linha um, parede da esquerda, havia um cara dormindo, encostado num moletom amarelo. Na mesma coluna, última posição, outro cara com idade para ser pai do primeiro também cochilava. E roncava. Ele tinha cabelos grisalhos e usava uma calça jeans notadamente desbotada, camisa xadrez surrada e sapato com sola bem, bem, bem gasta.

Girei meu pescoço e fiz um reconhecimento mais detalhado da sala. Ali, entre as 51 pessoas dispostas, apenas seis tinham menos de 35 anos – segundo minha avaliação – e quatro das outras, menos de 45. Foi deprimente. Mais ainda foi reparar que dos 51 presentes só eu e mais três pessoas não tínhamos roupas surradas e sapatos meramente funcionais como da “maioria esmagadora”, como muitos usariam a expressão.

Ser jornalista nunca foi fácil, mas é triste perceber como grandes profissionais hoje sofrem. Sofrem pela falta de mercado, sofrem pela falta de oportunidade, sofrem pelas poucas vagas destinadas à função, e desempenhada por gente que muitas vezes nem escrever direito sabe. Pior é que, neste universo inseguro, grandes jornalistas desacostumados com tecnologia se vêem chutados da área e ter no CV uma lista de prêmios de reconhecimento intelectual e anos de experiência em liderança de equipes não vale muita coisa, se não se sabe assinalar qual menu do Photoshop abre determinada gama de opções.

Sou parte dos 405 jornalistas inscritos para concorrer a uma das quatro vagas para o cargo de Editor II na Imprensa Oficial de São Paulo. Ontem fui fazer a prova e, pelo que vi, poucos dos 405 não foram. Os quatro que passarem receberão pouco mais de R$ 3 mil e ouvi muita gente, aquela gente com cabelos brancos na cabeça, comentando com colegas o desejo de conseguir “aquela bocada”, pois “salário assim tá impossível por aí”. Tudo bem que esse valor é inicial e há muitos benefícios, além do fato de todo mundo saber que é fácil encostar-se no serviço público concursado (não sei como alguém consegue achar vantagem nisso), mas, mesmo assim, não dá pra olhar a situação e se sentir confortável.

Confesso que não estudei nada e me senti "A" trouxa que gastou o valor da inscrição e ainda combustível, pedágio e horas da manhã de um precioso domingo à toa. Mas acho que valeu a pena por duas coisas: 1) eu dar mais valor para o que tenho; 2) confirmar que não sou fraca e nem burra, já que fiz sussa a prova sem me preparar.

Vivo reclamando do meu salário e do dinheiro que não sobra, mas estava bem vestida e pude chegar até lá com conforto. Tive vergonha de todos os meus reclames. Eu merecia ser a primeira peça eliminada daquela sala, que mais parecia um tabuleiro de damas, onde uma canibalizaria as outras para não ser comida. Saí com o estômago embrulhado, dor de cabeça e a imagem de uma senhora cafona e descabelada testando umas mil vezes a tinta de uma Bic velha num rascunho, antes de começar a prova. Talvez tenha dado azar e não é nada disso. Talvez não.

17.3.08

cotidiano raro

Estava subindo a rua e acompanhei uma despretensiosa cena romântica. Ouvi alguém comentando que ela é três anos mais velha que ele, mas não parece. De mãos dadas, eles atravessaram a rua e seguiram em frente bem devagar. Sorriam e cochichavam toda hora. Pareciam recém namorados. Casal de filme. Casal que juraria não existir.

Invejei a jovialidade da dupla que não se largou naquela fração de tempo ali, enquanto eu descaradamente invadia a vida alheia. Quando ele entrou na padaria e ela não conseguiu subir o degrau por causa das pernas bambas, ele não pensou duas vezes. Chamou ajuda, pegou a bengala e calmamente esperou que ela arrumasse, tímida, o pente que prendia os cabelos brancos e finos. Trêmulo, apertou a mão do jovem que ajudou sua mulher a permanecer ao seu lado naquele momento. Virou-se para ela e perguntou: “O de sempre, meu amor?”. Ela respondeu “sim, três pãezinhos e dois docinhos de coco”.

O que ninguém sabia sobre Monalisa

Vivia se depreciando. Não podia ser bonita e nem feliz. Era feliz e bonita, mas fazia de tudo para boicotar essas duas coisas. Ficava bem de azul, mas comprava só roupas vermelhas ou em tom de verde escuro, que não lhe caiam bem. Quando estava magra, se entupia de comida para obter uma forma pouco atraente.

Algumas vezes, a espontaneidade acabava com seus planos. Quando se dava conta estava sorrindo azul pra todo lado e conquistando amizades. Mas se passava por uma rua e via a alegria estampada no rosto refletida no vidro de uma janela, fechava a cara, puxava a boca para baixo e fazia cair os ombros. Um dia se perguntou o motivo daquela novela que só tinha uma personagem: ela. Qual seria o desfecho daquele drama? Não sabia a resposta e tinha medo de tentar entender.

Em segredo, à noite, depois que a cidade adormecia, entre perfumes e pincéis, ela se preparava para dormir. Sentia-se linda com o delineador bem traçado e o rímel que alongava os cílios. Penteava os cabelos dividindo-os ao meio e vestia seu melhor vestido. A cama vazia exteriorizava um vazio interno profundo e de mau hálito. No dia seguinte, antes de todos, acordava, lavava o rosto e punha-se feia. Até que um dia Leonardo a viu. E seu sorriso tímido, tentando disfarçar o que realmente ela era, entrou para a história.

7.3.08

já que não posto de fds...


Um feliz Dia Internacional da Mulher cheio de liberalismo americano!
Abraços capitalistas também para as feministas!
Eeeeee! É o nosso dia! Uhuhuhu!

Boushit!

5.3.08

a bailarina


A bailarina era uma bailarina comum
Mas quando colocava a música mais querida para tocar
A bailarina rodopiava em câmera lenta
Desafiando a poeira que brilhava no ar
Rodava e rodava e todas as luzes convergiam para ela
Que refletia raios brilhantes iluminando os olhos de quem a via dançar
A bailarina descortinava os cabelos enquanto ficava na ponta dos pés,
E distribuía sorrisos satisfeitos e doces
Com ternura, movimentava-se toda e toda ela se entregava ao vento
A bailarina fazia gestos delicados e
Era tão linda, tão meiga e tão pura que machucava os mais brutos com sua doçura
Ela cobria o salão desenhando elipses perfeitas
Ela deixava um rastro de perfume suave, que era soprado pela brisa
Ela tonteava as pessoas e tonteava os sons e tonteava o mundo todo
Até que
Quando ela apertava o stop
E a música mais querida parava
Ela voltava a ser uma bailarina comum.