17.5.07

17 de maio especial

Ninguém sabia, mas aquele 17 de maio era um dia diferente e comemorativo para a senhora de 78 anos que morava num sobrado no fim da ruazinha do bairro. Estava um pouco frio, mas ela levantou-se ainda mais cedo. Às 6h já estava com os chinelos fazendo pléc-pléc pela pequena casa, toda com carpete de madeira.

Tomou uma caneca grande de café com leite, comeu bolachas salgadas e torradinhas com geléia, habitual desjejum, para acompanhar os seis comprimidos matinais, que desciam garganta abaixo a contragosto, mas necessários de acordo com o médico.

Lavou a pouca louça rapidinho, colocou meias quentinhas, sapatilha confortável, escolheu um dos casaquinhos pendurados no mancebo do quarto e seguiu para a porta. No caminho, pegou o carrinho de feira, que já guardava uma sombrinha grande. “É sempre melhor prevenir do que remediar”.

Desceu os poucos degraus do dobrado e saiu cantarolando uma antiga canção de Francisco Alves :

“Quando a noite descer/ Insinuando um triste adeus/ Olhando nos olhos teus/ Hei de beijando teus dedos dizer/ Boa noite amor/Meu grande amor/ Contigo eu sonharei/ E a minha dor esquecerei/ Se eu souber que o sonho teu/ Foi o mesmo sonho meu”

Interrompia os versos apenas para da bom dia à vizinhança. Na feira, comprou duas batatas, uma mandioquinha salsa, uma cenoura, dois tomates, uma caneca de ervilhas frescas e gengibre, o segredo de muitas de suas receitas. Colocou no fundo do carrinho. Só faltava a galinha caipira! Por sorte ainda havia gente que comprasse e a banca da dona Zezé continuava sobrevivendo. Sem muito papo naquela quinta-feira, ela voltou para casa.

O dia não passava. Ela guardou todos aqueles ingredientes e fez o almoço. “Um arroz com feijão e carne moída está bom”, pensou. Em meia hora estaria pronto. Sentou no sofá com o barbante e a agulha e continuou a colcha de crochê que estava encomendada por uma boa cliente. O tempo precisava passar rápido... mas a colcha ficou pronta e ainda eram 10h30. “Tudo bem, com a fome que estou, almoço mais cedo”. E assim o fez. 11h ela estava colocando a conchada de feijão no prato.

A tarde foi mais tensa. O jantar especial seria servido às 20h e antes ela tinha várias coisas a fazer e nao podia desrespeitar os horários. Às 13h iria na manicure; às 14h30 na cabeleireira, que enrolaria seus cabelos; 16h tinha que estar em casa para passar o vestido novo cor de cereja comprado há um mês e meio, lavado e guardado em uma caixa com sachês perfumados no armário. Ela tinha reservado uma hora só para isso, pois as pregas da saia dariam certo trabalho e ela tinha que ter calma, já que as mãos viviam com cãimbras. Ainda disporia tudo que ia precisar sobre a cama para se arrumar. Perfume, presilhas para os cabelos, pó de arroz, batom, sapato e as “roupas de baixo”. Só depois disso faria o jantar.

E foi o que aconteceu. Às 19h estava com a sopa pronta e podia tomar o banho enquanto a comida curtia na panela. Ela estava ansiosa demais. Nunca comemorava o aniversário do marido, porque ele não gostava. O dela era exatamente no Natal, então a festa ficava mais concentrada no menino-Jesus. Mas o dia 17 de maio havia sido estipulado o dia deles. Aquela data sem importância para a maioria das pessoas do mundo.

Quando ele veio de Portugal a família passava fome e o que salvou os sete irmãos, pai e mãe, havia sido um emprego na empresa de telecomunicações do Rio de Janeiro. Ele era muito grato. Também foi lá que ele conheceu a moça mais formosa da firma, que limpava a enorme sala onde se reuniam telefonistas lindas, que falavam línguas estranhas e eram responsáveis por ligar pessoas de diferentes países por meio de um simples aparelho telefônico.

A empresa sempre fazia uma festinha no dia 17, o Dia das Telecomunicações, e foi um dia após a mais animada delas que, aos 60 anos, ela ficou viúva. “Lembre de mim com a alegria que compartilhamos ontem”, ele pediu.

O prato preferido dos dois estava cheirando na casa inteira e ela espirrou mais perfume. O filho único que morava no exterior ligou para ver se estava tudo em ordem e desejar um bom jantar. “O telefone faz milagres, me deixa perto de você”, ela falou. Desligou a chamada e sentou-se à mesa. A janela estava aberta e junto com o ventinho frio que fazia veio o som do violão dos seresteiros contratados na véspera. Eram 20h em ponto. Ela sorriu, mergulhou a colher no prato fundo de louça branca ouvindo: “Quando a noite descer/ Insinuando um triste adeus/ Olhando nos olhos teus/ Hei de beijando teus dedos dizer/ Boa noite amor/Meu grande amor/ Contigo eu sonharei/ E a minha dor esquecerei/ Se eu souber que o sonho teu/ Foi o mesmo sonho meu”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que senhora feliz.

Apesar não ter mais o marido/amigo, ainda mantém o ritual de comemoração. Fiquei tocada. Ela deve ter sido amiga de minha tia, de 82 anos, que era telefonista internacional no Rio de Janeiro na década de 40.

Obrigada pelo momento de esperança. Será que terei a força dessa senhorinha aos 78???