8.11.07

A mulher que se rendeu*

Já fazia um tempo, mas não lembrava quando aquilo virara uma obsessão, só sabia que parecia que tinha experimentado pela primeira vez ontem, o que não era verdade.

Mas naquele dia tudo ia mudar. Decidiu acabar com aquela dependência. Tinha uma folga e resolveu aproveitá-la. Ligou avisando que não ia trabalhar. “Uma indisposição”, disse e, na verdade, não mentiu. O fato é que os colegas de trabalho também agradeceriam se ela parasse com o vício. Já estava incomodando e era comum perceber as pessoas tomando outros rumos ou entrando por portas laterais quando a viam caminhar pelo corredor da empresa. Não a queriam por perto, ou apenas queriam manter-se na paz, sem aborrecimentos e sem precisar sentir aquele cheiro aflitivo que vinha dela.

Pois, não indo trabalhar, continuou de pijama, não abriu as janelas e nem fez muito barulho. Sentou-se sobre a cama e fitou a caixa de papelão colorida sobre a estante. Por causa dos entorpecentes guardados ali, ela já não lembrava há quanto tempo não conseguia comer e nem respirar direito e por isso decidiu acabar com tudo. Havia perdido noção de espaço, de tempo e parecia estar tão fraca que mal conseguia levantar seu ânimo e suas próprias vontades.

A caixa e todas as drogas que a entorpeciam combinavam bem naquele espaço. Há muito tempo ela se acostumara a alimentar-se de altas doses daquela química que a consumia e lhe roubava cor e graça. Ali existiam lembranças e momentos em forma de bilhetes, canhotos de cheque, cartões de estacionamento, tíquetes de cinema, de jogos de futebol, de postais encontrados em lojas, exposições, shows. Também continha fotos, muitas delas. Coloridas, em preto e branco, recortadas, com imã atrás para pregar na geladeira. Com marcas de ferrugem feitas por tachinhas do quadro de cortiça.

Um tempo depois parecia ainda o dia seguinte e ela já estava cheia daquela sensação. Por isso, trêmula, levou todo seu arsenal tóxico à área de serviço, despejou tudo no tanque de lavar roupas e, aos poucos, foi ateando fogo em cada pedaço de engano. A fumaça preta foi subindo e se espalhando pelo apartamento. Ela abriu todas as janelas e ao passo que o vento levava o fruto daquela droga em combustão, também se desfazia no ar tudo o que um dia a fez rir e depois a fez morrer em vida, vivendo como um zumbi oco e inexpressivo.

Horas depois, quando tudo o que era cinza se desgarrou dela, sentia-se meia. Olhou para o tanque e precisou limpar as borras negras que ficaram ali. Muitas manchas permaneceram e nem com litros de água sanitária a cor branca voltou a ser como antes. Cansou e parou de esfregar com força; era um desgaste em vão.

Voltando ao quarto, o espaço da caixa na prateleira gritava e a xingava com mil palavrões. Estendeu o dedo médio e colocou uns livros quaisquer no lugar. Assunto resolvido. Foi aí que se olhou no espelho. O reflexo mostrava uma senhora e não uma mulher. Passou os dedos pelo rosto e sentiu as rugas e a flacidez natural de seus anos.

Fechou os olhos, lembrou de tantas repetições em seus dias, o mesmo trajeto a pé, o mesmo metrô, o mesmo café com o mesmo gosto do mesmo lugar, o mesmo corredor com os mesmos colegas na empresa. As mesmas plantas, o mesmo quarto com janelas fechadas e momentos tantos idênticos, em que decorava cada resquício de um amor frustrado que deixava pegadas e marcas de suor naquela caixa, agora não mais existente.

Já fazia um tempo, mas não percebeu que o tempo estendeu-se e havia retido anos de sua vida quando navegava naquele mar de lamúrias. O mais difícil já tinha feito: acordado. Mas não acreditava que um príncipe encantado pudesse lhe retribuir o amor depositado fielmente naquela conta corrente de ninguém. Fechou os olhos e decidiu esquecer-se. Não sabia viver de outra forma senão aquela que a aprisionara. Uns disseram que, abstêmia, enlouqueceu. Outros que a encontraram morta na cama, outros ainda, que vive por aí, sem rumo. Eu acho que também virou fumaça e quando menos esperamos, ela tenta alimentar nossas tristezas e frustrações.

*texto escrito para colaboração no blog dos coleguinhas do Haja Saco, postado lá em 30-09

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