20.4.07

Não tem "dona" que ensine o que a gente vive

Nasci em São Paulo, capital, mas vivi minha infância na Bahia e, depois de apenas seis meses morando na cidade do vinho e do esqui artificial, São Roque, fui parar em Itatiba, uma cidadezinha simpática (e com terreno muito acidentado)com cerca de 90 mil habitantes. Mudar de escola era traumatizante! Quando saí da Bahia chamava as professoras de “pró” (que vinha de “prófêssora”). Em São Roque, o primeiro “pró” que eu disse bastou para que eu fosse motivo de riso não só da minha sala, mas da escola inteira. Não só eu, minha irmã que estava dois anos letivos atrás de mim também havia, no mesmo dia, cometido o mesmo e pavoroso “erro”. Aprendi. Lá eles usavam “tia” ou “professora”.

Seis meses depois, quando mudamos pra Itatiba, minha mãe me levou até a porta da escola Coronel Júlio César e eu entrei na sexta série. Imaginei que tudo correria bem. E correu, até meu primeiro “tia” e não “dona”, como usavam lá. Passei pelas mesmas risadas, pelo mesmo apuro, fiquei tão “vermelha” quanto da outra vez. O que eu mais queria era voltar pra Bahia e ver meus amigos e “prós”. Mas não tinha jeito. No dia seguinte estava eu lá de novo... e outros dias se passaram até que acabou a oitava série e hoje eu me lembro do Júlio César com mais saudade que da Bahia.

Os melhores anos da minha vida eu passei naquela escola, que comemora seus 112 anos. Toda vez que passo na frente do prédio sinto uma certa “raivinha”. A escola foi reformada há poucos anos e está muito mais bonita, mas eu fico chateada de terem tirado “a minha” quadra de lá, mudado um pouco o aspecto do pátio, apagando meu nome escrito com corretivo embaixo da escada central que dá na diretoria.

Lembro-me indo a pé pra escola. Eu e minha irmã. As camisetinhas brancas com o logotico “JC” em verde. Lembro-me do cheiro do creme de chocolate que às vezes a merendeira fazia (e era a única coisa que comia feita lá), me lembro do barulho dos sapatos de toda aquela criançada batendo no assoalho logo cedinho. Lembro-me do medo que todos tínhamos da professora de ciências, a “dona” Ércia. Lembro-me do primeiro “A+” que tirei com ela.

Amigos como os que fiz no Júlio César são difíceis de encontrar. O povo da cidade é acolhedor e sabe transformar “a gente” em sua gente. Hoje, pelo menos três dos meus grandes amigos conheci lá, entre guerrinhas de giz, bagunça na cantina pra comprar bala com chiclete dentro, estojos arremessados pela janela da minha antiga “oitava A”, que dá na rua Engênio Passos e muita chamada oral da “dona” Ércia.

Lembro-me de todos em fila, no meio do pátio central, cantando o Hino Nacional. Outro dia, vi a mesma cena lá. Quase desci e cantei com as mãos cruzadas atrás das costas, quase corri para ouvir o barulho dos meus passos no assoalho.

Lembro-me da Loira do Banheiro. Quer dizer, lembro do medo que tínhamos de encontrar o fantasma de uma enfermeira loira que tivera a alma aprisionada no prédio... e ela dividia sua eternidade entre o banheiro e o porão da escola. Aliás, foi no porão que, clandestinamente, comi com uns amigos pêssego em calda e balas de goma que seriam prenda pra festa junina. Era lá onde, às vezes, já na oitava série, último ano, ajudávamos as professoras a tirar cópias num antigo mimeógrafo e, por isso, nos sentíamos mais importantes. Coisa de criança. Coisinhas que decoram nossas lembranças, tão simples quanto sem preço.

A escola está muito mais bonita hoje. As carteiras estão reformadas, a cantina virou um palco para teatrinhos, se não me engano. Os jardins estão bem cuidados e as salas de aula têm nas paredes desenhos e trabalhos de outros alunos. Mas quando fecho os olhos eu tenho a quadra, tenho meu caderno de mapas e tenho meus amigos tentando colar minha prova de inglês. Tenho as professoras dando bronca, tenho as conversinhas infantis de intervalo. Tenho as escadas e a arquibancada cheias de ti-ti-ti no período da tarde, quando estávamos lá, mesmo não tendo aula.

Tenho no fechar de olhos os sabores, as sensações e até sinto o cheiro de álcool da folha recém passada no mimeógrafo. Tenho a recordação do tempo que passei a me sentir à vontade com as mudanças e passei a me sentir parte do povo da cidade. São esses pequenos detalhes que tornam minhas memórias adolescentes cheias de ternura. E são esses, os valiosos detalhes que me importam, quando passo por lá.

2 comentários:

Anônimo disse...

“A+” para o texto. Reminiscências parecem piegas para alguns, mas, na minha opinião, são sempre bem-vindas. Muito bom.

Unknown disse...

Fábio, Obrigada pelo A+. Deu até uma felicidadezinha e vontade de sair mostrando, sem querer, a nota máxima pro resto da classe.